Há dois anos atrás, enquanto voltava de ônibus de um congresso em Campinas, comecei a ler esse texto de Rubem Alves... quem disse que consegui parar antes de terminá-lo?
O texto é longo e sei como é horrível ler direto do computador, mas talvez seja o caso de imprimi-lo. Vale a pena!
Abraços,
Pedro
Sobre jequitibás e eucaliptos
Amor
“Já se disse que as grandes idéias vêm ao mundo mansamente, como pombas. Talvez, então, se ouvirmos com atenção, escutaremos, em meio ao estrépito de impérios e nações, um discreto bater de asas, o suave acordar da vida e da esperança. Alguns dirão que tal esperança jaz numa nação; outros, num homem.
Eu creio, ao contrário, que ela é despertada, revivificada, alimentada por milhões de indivíduos solitários, cujos atos e trabalho, diariamente, negam as fronteiras e as implicações mais cruas da história.
Como resultado, brilha por um breve momento a verdade, sempre ameaçada, de que cada e todo homem, sobre a base de seus próprios sofrimentos e alegrias, constrói para todos. “
Albert Camus
Para lhes dizer a verdade, não sei onde meu pai arranjou aquele almanaque, velharia do século passado, e que catalogava os municípios das Minas Gerais, um a um. Tenho de confessar que, igual àquele, ainda não vi outro, tão bem arranjado e consciente das coisas que deviam ser preservadas para a posteridade. Tanto assim que, além de exaltar as belezas do lugar (e que lugar é este que alguma beleza não possui?) e as excelências do clima, passava a descrever as excelências do povo, listando os vultos mais ilustres, a começar, como era de se esperar, pelos capitalistas, fazendeiros e donos de lojas, passando então aos médicos, boticários, bacharéis e sacerdotes, sem se esquecer, ainda que no fim, dos mestres-escolas. Lá, bem no começo, seguindo a ordem alfabética, estava Boa Esperança, terra de meu pai, e ele ajeitou os óculos para ver se descobria naquele registro do passado a informação de algum antepassado ilustre, quem sabe alguma glória de que se pudesse gabar! E o dedo indicador foi percorrendo o rol dos importantes, um a um, pelo sobrenome, pois que de primeiro nome todas as memórias já tinham sido apagadas. Até que parou. Lá estava. Não podia haver dúvidas. O sobrenome era o mesmo: Espírito Santo. Profissão: tropeiro. Tropeiro? Isto mesmo. E com a tropa de burros e o barulho imaginário dos sinos da madrinha, pelas trilhas da serra da Boa Esperança que Lamartine Babo cantou, foram-se também as esperanças de um passado glorioso. Que aconteceu aos tropeiros? Meu pai se consolou dizendo que, naquele tempo, tropeiro era dono de empresa de transportes. O fato, entretanto, é que o tropeiro desapareceu ou se meteu para além da correria do mundo civilizado, onde a vida anda ao passo lento e tranqüilizante das batidas quaternárias dos cascos no chão...
E aí comecei a pensar sobre o destino de outras profissões que foram sumindo devagarinho. Nada parecido com aqueles que morrem de enfarte, assustando todo mundo. Aconteceu com elas o que acontece com aqueles velhinhos de quem a morte se esqueceu, e que vão aparecendo cada vez menos na rua, e vão encolhendo, mirrando, sumindo, lembrados de quando em vez pelos poucos amigos que lhes restam, até que todos morrem e o velhinho fica, esquecido de todos. E quando morre e o enterro passa, cada um olha para o outro e pergunta: “Mas, quem era este?” Não foi assim que aconteceu com aqueles médicos de antigamente, sem especialização, que montavam a cavalo, atendiam parto, erisipela, prisão de ventre, pneumonia, se assentavam para o almoço, quando não ficavam para pernoitar, e depois eram padrinhos dos meninos e não tinham vergonha de acompanhar o enterro? Pra onde foram eles? Quem quer ser médico como eles? Também o boticário, um dos homens mais ilustres e lidos da cidade, presença cívica certa ao lado do prefeito e do
padre, pronto a discursar quando o bacharel faltava, tendo sempre uma frase em latim para ser citada na hora certa... E o boticário fazia as suas poções, e a gente lavava, em água quente, os vidros vazios em que ele iria pôr os seus remédios. E me lembro também do tocador de realejo que desapareceu, eu penso, porque com o barulho que se faz nas cidades, não há ninguém que ouça as canções napolitanas que a maquineta tocava. E me lembro também do destino triste do caixeiro-viajante, cujo progressivo crepúsculo e irremediável solidão foram descritos por Arthur Miller, em A morte do caixeiro-viajante.
Foi o tema que me deram, “a formação do educador”, que me fez passar de tropeiros a caixeiros. Todas, profissões extintas ou em extinção.
Educadores, onde estarão? Em que covas terão se escondido? Professores, há aos milhares. Mas professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor.
Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança.
Profissões e vocações são como plantas. Vicejam e florescem em nichos ecológicos, naquele conjunto precário de situações que as tornam possíveis e – quem sabe? – necessárias. Destruído esse habitat, a vida vai se encolhendo, murchando, fica triste, mirra, entra para o fundo da terra, até sumir.
Com o advento da indústria, como poderia o artesão sobreviver? Foi transformado em operário de segunda classe, até morrer de desgosto e saudade. O mesmo com os tropeiros, que dependiam das trilhas estreitas e das solidões, que morreram quando o asfalto e o automóvel chegaram. Destino igualmente triste teve o boticário, sem recursos para sobreviver num mundo de remédios prontos. Foi devorado no banquete antropofágico das multinacionais. E os médicos-sacerdotes? Conseguiam sobreviver, em parte porque as pessoas ainda acreditavam nos chás, cataplasmas, emplastros, simpatias e rezas de comadres e curandeiras. Foi em parte isto que impediu que se amontoassem nos consultórios do único médico do vilarejo. Além disto, o tempo durava o dobro. Por outro lado, a ausência dos milagres técnicos fazia com que as soluções fossem mais rápidas e simples. Bem dizia a sabedoria popular: “O que não tem remédio, remediado está.” Também a morte era uma solução.
E o educador? Que terá acontecido com ele? Existirá ainda o nicho ecológico que torna possível a sua existência? Resta-lhe algum espaço? Será que alguém lhe concede a palavra ou lhe dá ouvidos? Merecerá sobreviver? Tem alguma função social ou econômica a desempenhar?
Uma vez cortada a floresta virgem, tudo muda. É bem verdade que e possível plantar eucaliptos, essa raça sem-vergonha que cresce depressa, para substituir as velhas árvores seculares que ninguém viu nascer nem plantou. Para certos gostos, fica até mais bonito: todos enfileirados, em permanente posição de sentido, preparados para o corte. E para o lucro. Acima de tudo, vão-se os mistérios, as sombras não penetradas e desconhecidas, os silêncios, os lugares ainda não visitados. O espaço se racionaliza sob a exigência da organização. Os ventos não mais serão cavalgados por espíritos misteriosos, porque todos eles só falarão de cifras, financiamentos e negócios.
Que me entendam a analogia.
Pode ser que educadores sejam confundidos com professores, da mesma forma como se pode dizer: jequitibá e eucalipto, não é tudo árvore, madeira? No final, não dá tudo no mesmo?
Não, não dá tudo no mesmo, porque cada árvore é a revelação de um habitat, cada uma delas tem cidadania num mundo específico. A primeira, no mundo do mistério, a segunda, no mundo da organização, das instituições, das finanças. Há árvores que têm uma personalidade, e os antigos acreditavam mesmo que possuíam uma alma. É aquela árvore, diferente de todas, que sentiu coisas que ninguém mais sentiu. Há outras que são absolutamente idênticas umas às outras, que podem ser substituídas com rapidez e sem problemas.
Eu diria que os educadores são como as velhas árvores. Possuem uma fase, um nome, uma “estória” a ser contada. Habitam um mundo em que o que vale é a relação que os liga aos alunos, sendo que cada aluno é uma “entidade” sui generis, portador de um nome, também de uma “estória”, sofrendo tristezas e alimentando esperanças. E a educação é algo pra acontecer neste espaço invisível e denso, que se estabelece a dois. Espaço artesanal.
Mas professores são habitantes de um mundo diferente, onde o “educador” pouco importa, pois o que interessa é um “crédito” cultural que o aluno adquire numa disciplina identificada por uma sigla, sendo que, para fins institucionais, nenhuma diferença faz aquele que a ministra. Por isto mesmo professores são entidades “descartáveis”, da mesma forma como há canetas descartáveis, coadores de café descartáveis, copinhos plásticos de café descartáveis.
De educadores para professores realizamos o salto de pessoa para funções.
É doloroso mas é necessário reconhecer que o mundo mudou. As florestas foram abatidas. Em seu lugar, eucaliptos. Talvez que as coisas estejam um pouco abstratas e, por isto, vou penetrar no campo da
experiência pessoal de vocês. Vou fazer uma aposta arriscada e, mesmo que eu perca, creio que conseguirei ilustrar o meu ponto. Minha aposta é que vocês, em sua grande maioria, já passaram por uma fase religiosa (se é que ainda não estão nela, se é que ainda não voltaram para ela). Minha hipótese não é gratuita. Baseia-se em alguns estudos já feitos e relatados por Alvin Gouldner (The comng crisis of western sociology, New York, Avon Books, 1971, p. 24), que demonstram que uma significativa porcentagem de pessoas que se embrenharam pelo campo das ciências sociais havia pensado, em algum momento de sua vida, em seguir uma vocação religiosa.
Ainda que vocês não tenham passado pela experiência do sagrado, a sua imaginação os ajudará a entender o que desejo dizer. A ética religiosa cristã clássica sempre foi muito clara ao indicar que a moralidade de uma ação se baseia na intenção. Em outras palavras, o que define a identidade da pessoa, sob o ponto de vista desta ética religiosa, não é o que ela objetivamente faz, mas antes suas disposições íntimas. Tanto assim que um ato mau pode ser apagado pelo arrependimento. Articula-se aqui um mundo a partir da interioridade. Com o advento do utilitarismo, entretanto, tudo se alterou. A pessoa passou a ser definida pela sua produção: a identidade é engolida pela função. E isto se tornou tão arraigado que, quando alguém nos pergunta o que somos, respondemos inevitavelmente dizendo o que fazemos. Com esta revolução instaurou-se a possibilidade de se gerenciar e administrar a personalidade, pois que aquilo que se faz e se produz, a função, é passível de medição, controle, racionalização. A pessoa praticamente desaparece, reduzindo-se a um ponto imaginário em que várias funções são amarradas.
É isto que eu quero dizer ao afirmar que o nicho ecológico mudou. O educador, pelo menos o ideal que i
minha imaginação constrói, habita um mundo em que a interioridade faz uma diferença, em que as pessoas se definem por suas visões, paixões, esperanças e horizontes utópicos. O professor, ao contrário, é funcionário de um mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. É uma entidade gerenciada, administrada segundo a sua excelência funcional, excelência esta que é sempre julgada a partir dos interesses do sistema. Freqüentemente o educador é mau funcionário, porque o ritmo do mundo do educador não segue o ritmo do mundo da instituição.
Não é de se estranhar que Rousseau tenha se tornado obsoleto. Porque a educação que ele contempla ocorre colada ao imprevisível de uma experiência de vida ainda não gerenciada. O que aconteceu neste meio tempo? Para ser gerenciada, a vida teve de ser racionalizada. Bem observava Weber que a racionalização exigia que o corpo do operário, animado pelo ritmo biológico do tempo, fosse submetido ao ritmo da máquina, animado pelo tempo estabelecido pela racionalização. E é neste espaço-tempo, político-institucional, que existe esta entidade contraditória que recebe um salário, tem CIC, RG e outros números, adquire direitos, soma qüinqüênios, escreve relatórios, assina listas de presença e quantifica os estudantes: o professor. Notem o embaraço da gerência para avaliar esta coisa imponderável que é o ensino. Avaliar pesquisa é muito fácil, porque ela pode ser quantificada: número de artigos publicados em revistas especializadas em português, número de artigos publicados em revistas especializadas no estrangeiro (que valem mais), número de livros escritos. Estas são atividades pelas quais um professor ganha concursos, consegue promoção, ganha acesso à administração de projetos e à administração de recursos. Mas, e o ensino? Como avaliá-lo? Número de horas/aula dadas? Neste caso, o professor caixeiro-viajante seria o paradigma. O fato é
que não dispomos de critérios para avaliar esta coisa imponderável a que se dá o nome de educação...
E é aqui que se encontra o problema: se não dispomos sequer de critérios para pensar institucionalmente a educação, como pensar o educador? A formação do educador: não existirá aqui uma profunda contradição? Plantar carvalhos? Como, se já se decidiu que somente eucaliptos sobreviverão?
Plantar tâmaras, para colher frutos daqui a cem anos?
Como, se já se decidiu que todos teremos de plantar abóboras, a serem colhidas daqui a seis meses?
O educador é um ausente. Nosso espaço funcional, gerenciado, torna possível falar sobre funcionários definidos pela instituição. Mas ele não permite que se fale sobre coisa alguma que se move num espaço definido pela liberdade. O educador tem, assim, o estatuto de um conceito utópico, de existência prática proibida e, por isto mesmo, existência teórica impossível. E é por isto que as ciências silenciaram sobre ele.
Onde se encontra o educador no discurso científico sobre a educação, especialmente aquele das ciências sociais? Ah! Descobriu-se que a educação, como tudo o mais, tem a ver com instituições, classes, grandes unidades estruturais, que funcionam como se fossem coisas, regidas por leis e totalmente independentes dos sujeitos envolvidos. E daí chegamos a esta posição paradoxal em que, para se conhecer o mundo humano, é necessário silenciar sobre os homens. Antes de tudo, é necessário um “anti-humanismo” metodológico. A realidade não se move por intenções, desejos, tristezas e esperanças. A interioridade foi engolida. Sobre este ponto concordam as mais variadas correntes científicas. O mundo humano é o mundo das estruturas e seu determinismo. E para que as estruturas se revelem é necessário que se lhes arranque a crosta de pessoas que
as cobrem, da mesma forma como se recupera uma peça arqueológica há muito submersa, pela raspagem do limo e do lodo que sobre ela se depositaram. É justo que nos preocupemos com pessoas, mestres e aprendizes. Mas não é neste nível que se encontram as explicações, e ciência do real. Reprodução. Aparelho ideológico de Estado. Aqui está a marca do nosso discurso sociológico, reflexo de uma realidade política e institucional: a autonomia das instituições.
Uma vez firmemente organizada, uma organização tende a assumir uma identidade própria que a torna totalmente independente das pessoas que a fundaram e mesmo daquelas que são seus membros (Peter Blau, citado por Gouldner, op. cit., p. 511.
Uma vez aceitos tais pressupostos, como falar sobre o educador? Somente para dizer, talvez, que algumas pessoas têm a ilusão de poderem ser educadoras, porque o fato é que o controle, já há muito tempo, passou das mãos de pessoas para a lógica das instituições.
No entanto, continuamos a falar sobre o educador, a nos perguntar sobre sua formação – como se ele fosse uma entidade entre outras. Não é curioso isto – que continuamos a falar assim, a despeito de todas as proibições? Proibição prática, proibição teórica... Curioso que esta fantasia continue a nos assombrar e a nos inspirar como visão, talvez,
daquilo que poderíamos ser
se não tivéssemos sido domesticados.
Aqui, talvez, uma ciência pouco ortodoxa possa vir em nosso auxílio, para nos ajudar a compreender este discurso sobre possibilidades ainda não realizadas, que só se articula pela mediação da imaginação e da fantasia. Discurso perigoso e amedrontador, que tem em uma de suas extremidades o louco e na outra o poeta. Na verdade, que tênues são os limites que os separam porque, cada
um, ao seu modo, se recusa a falar sobre o real, preferindo antes anunciar oausente. É evidente que o pensamento marcado pela objetividade bruta, e que se esgota nos objetos apresentados à sua inspeção, recuará com pavor e desprezo, pois ele tem o seu lugar nas opções que triunfaram e nos fatos que se impuseram, enquanto o discurso do imaginário explora o real do ponto de vista de suas ausências, das possibilidades que fracassaram, não por serem menos belas mas por serem mais fracas, mas que continuam presentes sob a forma de promessas, esperanças, fantasias, utopias... loucura. Aqui a palavra
não é expressão de uma coisa,
mas antes da ausência desta coisa,
palavra que faz com que as coisas desapareçam,
impondo em nós o sentimento de uma ausência universal. (Maurice Blanchot, “Le paradoxe d’aytre” in: Les temps modernes, jun. 1946, p. 1580.
É a ciência pouco ortodoxa da psicanálise que nos informa que o discurso sobre as ausências, discursos dos sonhos, das esperanças, tem o seu lugar na interioridade de nós mesmos, explodindo, emergindo, irrompendo sem permissão, para invadir e embaraçar o mundo tranqüilo, racional e estabelecido de nossas rotinas institucionais. Seria possível, então, compreender que a polaridade entre educadores e professores não instaura uma dicotomia entre duas classes de pessoas, umas inexistentes e heróicas, outras existentes e vulgares, mas antes uma dialética que nos racha a todos, pelo meio, porque todos somos educadores e professores, águias e carneiros, profetas e sacerdotes, reprimidos e repressores.
Não é por acidente, então, que os professores sejam aqueles que sonham com os educadores e os funcionários tenham visões de liberdade, e os animais domésticos façam poemas e tenham loucuras sobre o selvagem que habita cada um deles.
Não se trata de formar o educador, como se ele não existisse.
Como se houvesse escolas capazes de gerá-lo, ou programas que pudessem trazê-lo à luz.
Eucaliptos não se transformarão em jequitibás, a menos que em cada eucalipto haja um jequitibá adormecido.
O que está em jogo não é lima técnica, um currículo, uma graduação ou pós-graduação.
Nenhuma instituição gera aqueles que tocarão as trombetas para que seus muros caiam.
O que está em jogo não é uma administração da vocação,
como se os poetas
profetas,
educadores,
pudessem ser administrados.
Necessitamos de tini ato mágico de exorcismo.
Nas estórias de fadas é um ato de amor, um beijo, que acorda a Bela Adormecida de seu sono letárgico, ou o príncipe transformado em sapo.
Diz-nos Freud que a questão decisiva não é a compreensão intelectual, mas um ato de amor. São atos de amor e paixão que se encontram nos momentos fundadores de mundos, momentos em que se encontram os revolucionários, os poetas, os profetas, os videntes. É depois, quando se esvai o ímpeto criador, quando as águas correntes se transformam primeiro em lagoas, depois em charcos, que se estabelece a gerência, a administração, a burocracia, a rotina, a racionalização, a racionalidade.
A questão não é gerenciar o educador.
É necessário acordá-lo.
E, para acordá-lo, uma experiência de amor é necessária.
Já sei a pergunta que me aguarda
“– E qual é a receita para a experiência de amor, de paixão?
Como se administram tais coisas?
Que programas as constroem?”
E aí eu tenho de ficar em silêncio, porque não tenho resposta alguma.
Na verdade, quando nos propomos tais perguntas estamos, realmente, nos questionando: Por que não ficamos grávidos e grávidas com o educador? Por que não somos consumidos pela paixão, por mais irracional que ela seja?
Ah! Como a paixão é doce. Somente os apaixonados sabem viver e morrer. Somente os apaixonados, como D. Quixote, vislumbram batalhas e se entregam a elas. A paixão é o segredo do sentido da vida. E que outra questão mais importante poderá haver? Dizia Camus que o único problema filosófico realmente sério é “julgar se a vida é digna ou não de ser vivida”.
E ele comenta que, ante tal questão, todos os problemas factuais, científicos, perdem o seu sentido. “Nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico”, ele diz. E Galileu fez muito bem em se retratar perante a Inquisição. Porque a verdade científica não valia uma vida.
“Se a terra gira em torno do sol ou se o sol gira em torno da terra, é uma questão de profunda indiferença.” “Por outro lado”, ele continua:
vejo muitas pessoas morrerem porque julgam que a vida não é digna de ser vivida. Vejo outros, paradoxalmente, sendo mortos por idéias ou ilusões que lhes dão uma razão para viver – razões para viver são também excelentes razões para morrer. Concluo, portanto, que o sentido da vida é a mais urgente das questões” (Albert Camus, The myth of Sisyphus, New York, Randon House, 1955, p. 3-4).
Eu me atrevo a dizer que o fantasma que nos assusta e que nos causa pesadelos mesmo antes de adormecer, o fantasma que nos faz contar, apressados, os anos que ainda nos faltam para a aposentadoria, é a absoluta falta de amor e paixão, o absoluto enfado das rotinas da vida do professor. E por mais força que façamos, não descobrimos aí uma razão para viver e morrer.
Que amante quereria aposentar o seu corpo depois de 25 anos de experiência de amor? O amor e a paixão não anseiam pela aposentadoria, porque são eternamente jovens.
No entanto, são causas como esta, a aposentadoria do professor aos vinte e cinco anos, que nos mobilizam. Não me entendam mal. Não vai aqui uma crítica. Vai apenas uma constatação: como deve ser sem sentido a vida de alguém que, após vinte e cinco anos, se sente exaurido! Recordo-me da descrição que Marx fazia da situação do trabalhador, vivendo sob a condição de alienação. A contradição é a mesma. De um lado, a possibilidade ausente do trabalho como experiência expressiva, lúdica, criadora, através da qual o trabalhador compõe, como se fosse um artista, o seu próprio mundo. Do outro, a realidade do trabalho, como trabalho forçado, trabalho para outro, trabalho sem investimento erótico, trabalho que se faz não pelo prazer que dele se deriva, mas apenas porque, com o que dele se ganha, o trabalhador pode se dar ao luxo de se dedicar um pouco àquilo de que gosta, fora do trabalho. É neste contexto, e apenas nele, que a aposentadoria faz sentido, e se apresenta como um ideal de libertação. Seria possível pensar que Guimarães Rosa, Picasso ou Miguel Ângelo tivessem, como programa, a jubilação de suas funções? Se, no momento, a aposentadoria é impossível, talvez a alternativa seja não uma “sociedade sem escolas”, como queria Illich, mas uma escola sem alunos... O trabalho forçado seria menos penoso. É claro que, no contexto da fábrica, a emergência da criatividade e do trabalho lúdico significaria o estabelecimento da anarquia: a abolição da gerência da atividade. Não se pode pensar, portanto, que nenhum sistema baseado nos princípios da racionalização e administração de recursos possa cometer a insensatez de fazer lugar para o “preparo da criatividade” – como não pode fazer lugar para o preparo do educador. Melhores professores, sim. Porque bons professores, dentro deste
quadro, são gerentes de produção, controladores de qualidade, especialistas no ensino de técnicas. Mas se se acende a fornalha que faz entrar em ebulição o caldeirão mágico da criatividade, preparam-se os caminhos que conduzem dos subterrâneos reprimidos do inconsciente até o nosso mundo diurno-institucional; abrem-se as portas das feras selvagens não reprimidas; soltam-se as águias. E o mundo tranqüilo das instituições, burocracias, orçamentos, projetos e relatórios entra em crise. Por que nos tornamos animais domésticos? Por que nos esquecemos dos nossos sonhos? Que ato de feitiço fez adormecer o educador que vivia em nós?
Aqui é fácil encontrar explicações apontando para os donos do poder: foram eles que nos castraram.
Tenho, entretanto, a suspeita de que esta não é toda a estória a ser contada. Pergunto-me se nós mesmos não preparamos o caminho. Quando os ferros em brasa nos marcaram, não é verdade que já éramos bois de carro, há muito tempo? Pergunto-me se a nossa domesticação não começou justamente quando nos deixamos hipnotizar pelas canções de amor que a ciência nos cantou... Bem dizia o mestre Wittgenstein que a linguagem tem um poder enfeitiçante. E eu me pergunto: de que palavras nos alimentamos? Deixados para trás os anos de paixão religiosa, para que novos textos sagrados nos voltamos? De onde retiramos a inspiração para a nossa meditação?
É necessário, antes de tudo, objetividade.
Que o cientista não fale; que seja o objeto que fala através do seu discurso.
Valores? Paixão? Confissões de amor? Nada mais que ideologia. “O que importa é o que é e o que seremos forçados a fazer por esta realidade”.
E foi assim que aprendemos a assepsia do desejo, a repressão do amor, a vergonha de revelar as paixões e as esperanças. Dizer os próprios sonhos? Contar as utopias
construídas no silêncio? Quem se atrevia? Quem tinha coragem bastante para escrever com sangue? Com certeza que tais heróis foram poucos nos corredores da academia. E nem podia ser de outra forma: porque tínhamos medo uns dos outros. Eu sempre me lembro da denúncia que Nietzsche fazia daqueles que pretendiam ser donos do saber:
Eles se entreolham com cuidado e desconfiança. Engenhosos em astúcia pequena, esperam aqueles cujo conhecimento anda com pernas mancas. Esperam, como se fossem aranhas... (Friedrich Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra, em Walter Kaufmann, The Portable Nctzsche, N. York, Vikings, p. 237).
As coisas caminham de mãos dadas.
De um lado, sucumbimos ao fascínio da ideologia da ciência e suas promessas de um conhecimento objetivo e universal. Por outro, deixamo-nos intimidar e tivemos medo do escárnio. Por isto mesmo, retiramo-nos do nosso falar. E nossa ausência do nosso discurso significa, praticamente, que ele é vazio de significação humana. Pertence à classe de todos aqueles discursos pelos quais ninguém está pronto nem a viver, nem a morrer, apontados por Camus.
Se nem nós estávamos em nosso discurso, como poderíamos pretender que aqueles que a escola nos entregou como alunos, estivessem? Assim, o discurso da escola ficou, progressivamente, como algo solto no ar, que não se liga, pelo desejo, nem aos que fazem de conta que ensinam, nem aos que fazem de conta que aprendem. Ninguém fala. Quem fala é um sujeito universal, abstrato: observa-se, nota-se, constata-se, conclui-se. Não foi assim que nos ensinaram? Não foi assim que ensinamos? Lembro-me das palavras de fogo e ira que Zaratustra lançou contra aqueles que sucumbiram a esta tenta: É isto que, aos vossos ouvidos, segreda o vosso espírito mentiroso
– Eis o meu valor mais alto: olhar para a vida, sem desejo – não com a língua pendente, como se fosse um cão.
Encontrar a felicidade na pura contemplação, com uma vontade que morreu, o corpo inteiro frio e inerte, como cinza... Percepção imaculada de todas as coisas!
Que é que ela significa, para mim?
Que das coisas nada desejo exceto a permissão de ficar prostrado perante elas, como um espelho de cem olhos. (ibidem, p. 234).
De fato, espelho de cem olhos. De fato, uma vontade que morreu. De fato, o ideal da objetividade. De fato, um discurso pretensamente colado ao objeto. De fato, um discurso do qual o sujeito se ausentou.
O resultado?
A um discurso que não é uma expressão de amor falta o poder mágico de acordar os que dormem, falta o poder mágico para criar. E Zaratustra conclui:
E esta será a vossa maldição, vós que sois imaculados, vós percebedores puros: nunca dareis à luz, ainda que estejais gordos e grávidos no horizonte (ibidem, p. 235).
Jaspersen observou, certa vez, que “os homens cantaram suas emoções antes de enunciar as suas idéias”. Mas existe também a situação inversa: a de enunciar idéias mesmo depois que delas fugiram o amor e o desejo – sonambulismo, ventriloquia. Não será esta a nossa situação?
E eu pensaria que o acordar mágico do educador tem então de passar por um ato de regeneração do nosso discurso, o que sem dúvida exige fé e coragem: coragem para dizer em aberto os sonhos que nos fazem tremer. A formação do educador? Antes de mais nada: é necessário reaprender a falar.
Em Gabriela cravo e canela há um momento em que a filha de um coronel diz à sua mãe que pretendia casar-se
com um professor. Ao que a mãe retruca, numa clássica lição de realismo político:
E o que é um professor, na ordem das coisas?
Que tem o ensino a ver com o poder?
Como podem as palavras se comparar cora as armas?
Por acaso a linguagem já destruiu e já construiu mundos?
Parece que o destino do educador se dependura na resposta a estas questões. Se fazemos a nossa aposta em que o mundo humano é regido por leis idênticas àquelas que movem o universo físico, se acreditamos que a sociedade tem o estatuto de coisa, se aceitamos que o futuro não passa por dentro do que pensamos e do que dizemos, em resumo, se não arriscamos tudo na confiança de que a palavra tem um poder criador, resta-nos então uma única opção: o silêncio. É muito revelador que Marx, para destruir os hegelianos de esquerda, que acreditavam que também as palavras entram na argamassa com que a sociedade é construída, o tivesse feito justamente com o auxílio de palavras: A ideologia alemã. Se a crítica deixa as coisas como estão, por que fazer a crítica da crítica? Se as palavras são vazias de poder, por que usar tantas palavras para discutir o poder? Não, o fato é que todos aqueles que ainda têm a ousadia de falar e escrever, acreditam, ainda que de forma tênue, que o seu falar faz uma diferença.
Isto é de crucial importância para o educador, e desta crença depende o seu sono e o seu acordar. Porque, com que instrumentos trabalha o educador? Com a palavra. O educador fala. Mesmo quando o seu trabalho inclui as mãos, como o mestre que ensina o aprendiz a moldar a argila, ou o cientista que ensina o estudante a manejar o microscópio, todos os seus gestos são acompanhados de palavras. São as palavras que orientam as mãos e os olhos.
Vocês, que acompanharam o documentário Raízes Negras ou leram o livro, se lembrarão de que, quando Kunta Kinte foi vendido a um dono, um novo nome lhe foi dado. E isto não foi acidente. O primeiro ato de domínio exige que o dominado esqueça o seu nome, perca a memória do seu passado, não mais se lembre de sua dignidade e aceite os nomes que o senhor impõe. A perda da memória é um evento escravizador. É por isto mesmo que a mais antiga tradição filosófica do mundo ocidental afirma que o nosso destino depende de nossa capacidade e vontade de recuperar memórias perdidas. Na linha que vai de Platão a Freud, o evento libertador exige que sejamos capazes de dar nomes ao nosso passado. A lembrança é uma experiência transfiguradora e revolucionária. Tanto assim que Marcuse chega a se referir à função subversiva da memória. Por mais curioso e paradoxal, parece que o mais distante é aquilo que está mais próximo do nosso futuro.
E agora eu convidaria esta pessoa singular, que só tem nas mãos a palavra, a um ato de exorcismo e quebra de feitiço. É necessário lembrar, recuperar a memória dos momentos em que o mundo foi instaurado. Lá, quando a criança, com seus olhos virgens, olha para o todo amorfo e inominável ao seu redor, e a desordem gira em torno dela, até que a palavra lhe é dirigida, dando nomes, impondo ordem, fazendo nascer um mundo... “No princípio era a Palavra...” Não qualquer palavra, porque as palavras eficazes são aquelas que partem daqueles que são os outros significativos, aqueles que têm, com a criança, um destino comum, aqueles para quem a criança importa, porque ela será uma companheira numa mesma habitação, seja casa, seja vila, seja jornada... Jornadas também são habitações. E ali descobrimos que “cada pessoa que entra em contato com a criança é um professor que incessantemente lhe descreve o mundo, até o momento em
que a criança é capaz de perceber o mundo tal como foi descrito” (Carlos Castañeda, Journey to Ixtlan, New York, Simon e Schuster, 1972, p. 8): professores que não sabem que são professores, sem créditos em didática nem conhecimento de psicologia. Só dispõem da palavra e do destino comum. E sem saber como, e sem ter nenhuma teoria sobre como é que as coisas acontecem, os mundos são criados.
“E o que é um professor, na ordem das coisas?”
Talvez que um professor seja um funcionário das instituições que gerenciam lagoas e charcos, especialista em reprodução, peça num aparelho ideológico de Estado. Um educador, ao contrário, é um fundador de mundos, mediador de esperanças, pastor de projetos.
Não sei como preparar o educador. Talvez que isto não seja nem necessário, nem possível... É necessário acordá-lo. E aí aprenderemos que educadores não se extinguiram como tropeiros e caixeiros. Porque, talvez, nem tropeiros nem caixeiros tenham desaparecido, mas permaneçam como memórias de um passado que está mais próximo do nosso futuro que o ontem. Basta que os chamemos do seu sono, por um ato de amor e coragem. E talvez, acordados, repetirão o milagre da instauração de novos mundos.