terça-feira, 5 de abril de 2011

A obra de arte e sua autonomia: histórias e imagens na educação musical

Por Sara Cesca

Ao pensar sobre os desdobramentos artísticos ocorridos desde o início do século XX, e a pluralidade artística com a qual convivemos, tenho como preocupação principal dedicar aos alunos uma formação musical integral que promova uma inserção no campo da Estética (entendida aqui como disciplina filosófica). Tarefa essa a que me encarrego enquanto professora de música.

Através desta filosofia de trabalho, mediei algumas pesquisas no campo da educação musical, e venho percebendo que a inserção das crianças por intermédio desta concepção filosófica, propicia um contato muito singular com as artes, especialmente no que diz respeito ao contato com obras contemporâneas. Os métodos tradicionais de ensino pressupõem que para haver uma compreensão da linguagem musical, é necessário um domínio prévio dos códigos musicais; porém, através de muitas pesquisas, pude comprovar que a compreensão da música em sua concretude transcende qualquer elemento gráfico (compreensão da notação musical), e um dos mecanismos mais importantes para apreender esta linguagem reside no próprio pensamento. Refletir sobre o que se cria ou que se ouve, sobre a obra ou sobre o autor, sobre o intérprete ou sobre a platéia, sobre o que é arte ou para que(m) ela serve, traz a possibilidade de se levantar questionamentos que desenvolvem a abstração do pensamento, bem como permite ao aluno uma apreciação significativa da sua própria produção musical ou da arte em qualquer período da história. Refletir sobre uma obra musical é fazer música, ou simplesmente pensar sobre aspectos da música é pensar musicalmente. Neste artigo pretendo relatar a importância da estética como instrumento para o desenvolvimento do pensar musical, e a importância das relações que se cria.

A partir de uma experiência vivenciada em sala de aula e em seguida numa sala de concertos venho de maneira sucinta ilustrar tais experiências.

Na sala de aula

Realizada na Escola Interativa de Ribeirão Preto, esta experiência ocorreu numa sala caracterizada por seu aspecto multiseriado, isto é, composta por onze alunos de primeiro, segundo e terceiro ano do ensino fundamental. A pedagogia desta escola também pressupõe uma forte interatividade entre as disciplinas, que trabalham temas transversais. Naquele momento as crianças estudavam sobre os “mares e oceanos” e na busca por integrar os assuntos pensei que seria oportuno trabalhar a obra “La Mer” de Debussy. Embora o direcionamento da minha aula estivesse vinculado ao tema geral, a proposta para o trabalho musical não consistia em nenhum momento em dizer o que ouviríamos, senão baseava-se apenas em levantar alguns problemas filosóficos relacionados à obra. No entanto, depois de algumas conversas, e após a escuta musical, para alguns alunos “o mar” foi desvelado como tema da música, algo que eles “descobriram” sem saber que ouviam La mer. Transcrevi no corpo do texto alguns diálogos que ocorreram nesta atividade:

Profa. Sara: Quando escutamos uma música com letra, ou seja, uma canção compreendemos sua mensagem, mas e quando ela não tem letra, será que ela diz alguma coisa?

Alguns levantaram a mão e disseram que sim, mas certo aluno me intrigou dizendo que não, “sem letra a música não quer dizer nada”. Respeitei a sua colocação como a todas as outras.

Já incitados então com esta conversa de que a música sem texto poderia ou não comunicar, propus a escuta. Após a apreciação da obra todos já estavam com suas mãos levantadas prontos para dizer sobre suas impressões. Foram muitas histórias e imagens que a música sucitou, dentre elas, poucos “mares ou oceanos”. Para minha surpresa o primeiro aluno a dizer que imaginou um mar foi o mesmo que outrora havia me dito que a música sem letra nada dizia. Dei continuidade na aula da seguinte maneira:

Profa. Sara: Como é possível uma música ser capaz de dizer tantas coisas? Será que aqui na sala existe uma história verdadeira?

Ana[1]: Todas as histórias são verdadeiras, pois a música pertence ao mundo e ela é de todos!

Maria: É como o folclore!

Ana: Diz o que você imaginou professora?Conta pra gente!

Profa. Sara: Não posso, eu já possuo muitas imagens desta obra e se eu falar posso influenciar em suas histórias, e mais: como sou professora, alguns podem achar que a minha impressão é melhor ou mais verdadeira.

Após esta conversa coloquei novamente a obra para que pudessem apreciar outros detalhes. Ao término da escuta, as mãos já estavam levantadas novamente.

Ciro: Professora imaginei outra história agora!

Ana: É verdade! Aquela que eu pensei está ficando embaçada!

Profa. Sara: Vejam só que interessante! Sabe o que teria acontecido se eu tivesse contado minha história?

Maria: Se você tivesse contado professora, nós não teríamos imaginado a nossa segunda história! Teríamos imaginado a sua!

Assim sendo, propus como atividade um desenho a partir das imagens e histórias que lhes ocorreram, e a professora tutora da sala sugeriu que cada um contasse numa carta destinada ao compositor Debussy, suas impressões. Ao término da aula questionei-me se havia ensinado música, mas não tive dúvidas: além de ensinar música através do ato de apreciar, tive a oportunidade de inseri-los no universo da obra através de um problema da estética, ou seja, a autonomia relativa que a obra possui quando entregue ao público.

Na sala de concertos

A partir do momento em que a obra chega ao ouvinte ela “não mais pertence ao autor”, estas foram as palavras que o compositor Lucas Galon, no último Juventude tem concerto no Teatro Pedro II, dirigiu para a platéia após a execução de uma de suas obras. Discretamente, após a apresentação da obra Qohelet, conversei com algumas crianças da escola Professora Elvira Yolanda Ervas (Brodowski) e da Creche Modelo (Ribeirão Preto) sobre as impressões que obra tinha lhes causado, e pude perceber nestas simples conversas, como a obra permeou de maneira significativa a vida daquelas crianças. De maneira simples e bem didática o maestro levantou esta mesma questão para a platéia, mas naquele momento ninguém se sentiu à vontade para dizer o que sentiu ou pensou na presença de autoridades como o próprio compositor. O fato é que, expressar relações vividas com a arte nos traz sempre um receio de que o que expressamos não seja a verdade da obra. Mas justamente por ser ela ‘aberta’ e ‘fechada’ ao mesmo tempo, e por não pertencer mais ao compositor, quem poderia deter esta verdade? Através da educação musical poderemos especular sobre essas múltiplas verdades desdobradas na obra. Uma vez que, se a educação musical conduz ao ato apreciador, faz-se música.

Transcrição do texto 1

Carta destinada ao compositor Debussy sobre as impressões da obra “La Mer”

“Debussy, quando ouvi sua música pela primeira vez eu imaginei assim: era um barco e quando a música aumentava o mar ficava agitado, então uma hora o barco vira para a esquerda e encontra uma terra cheia de pássaros. Da segunda vez imaginei: eram grandes aventureiros que descobriram novas terras, terras cheias de obstáculos”. Ana, 8 anos


Sara Cesca é bacharel em violino, graduada pelo depto. de Música da ECA-USP Ribeirão Preto. Além de sua atuação como instrumentista, tem se dedicado especialmente ao ensino musical infanto-juvenil.

sara.cesca@gmail.com


[1] Ana, Maria e Ciro são nomes fictícios.